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Expedição pelo Onofre encerra sua primeira etapa

Por Daniel e Josué Fernandes, Kleber Kavazza e Neia Costa

Após oito meses, a Expedição pelo Onofre encerra sua primeira etapa. De novembro de 2021 a junho de 2022, em sete travessias percorremos o Onofre, bacia que apresenta os seguintes números: Da nascente à foz: 23km de extensão. Área da bacia: 109km² (corresponde a um quinto da área do município de Atibaia), uma parte encontrando-se no município de Bom Jesus dos Perdões. Divisor de água: 58km. Área do município: 491km².

Onofre, bem proximo da nascente, em Bom Jesus dos Perdões

Em relação ao Rio Atibaia, a bacia do Onofre encontra-se em sua margem esquerda e faz limite com as seguintes bacias: a Leste com Itapetinga, a sul com Jundiaizinho e a oeste com Folha Larga.  De início, antes mesmo de começarmos as travessias ainda em outubro de 2021, chegamos ao nome Expedição pelo Onofre.

O “pelo” de EXPEDIÇÃO PELO ONOFRE carrega consigo uma dupla simbologia. No sentido de “em favor de”, o PELO representa um chamado. Um pedido de socorro do moribundo que agoniza. Um clamor por indulgência. Também podemos entender PELO no sentido de percorrer algo ou através de suas entranhas.

Resgatando o pensar do jagunço Riobaldo Tatarana (GS:V de JGR), nas entranhas do Onofre presenciamos o desenrolar dual daquele que se apossou deste espaço, o humano.

Por vezes, nas agruras da vida, o humano se faz oco, vazio de humanidade. Noutras vezes, seu oco encontra-se tomado de humanidade. Mas que humanidade é essa? Talvez aquela que um dia habitou os corpos de Mahatma Ganghi, Jesus, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce. Humanidade é uma condição humana que independe de se ter uma religião ou uma crença. Condição humana que se encontra encoberta por uma neblina.

Quando tudo começa

Junho de 2020, ano no qual tudo começa. A leitura do livro Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosas faz com que a névoa se dissipe, momentaneamente, e possamos visualizar no Onofre as travessias de Riobaldo. Além disso, 2020 fora um ano marcado pelo pleito municipal, fato que possibilitou capturar a travessia do livro para a realidade. Assim como a pandemia do vírus e outras pandemias que já existiam e encontravam-se escondidas são escancaradas.

De 2020 a março de 2021, um longo período de maturação, de imersão, culminando com o primeiro contato, via fone, com Josué. Mais um período de maturação das ideias e em outubro de 2021, o primeiro encontro físico do trio de caminhantes Daniel, Josué e Kleber. Após uma longa conversa regada a um acolhedor café, o que ficou decidido é que nossa única pretensão seria não ter pretensão alguma. Não se trata de fazer-se ativista ou algo do gênero, mas meramente uma travessia pelo sertão que habita nosso oco, nossas almas.

Do despretensioso, surgem as travessias

Novembro 2021 – Primeira travessia pelo Onofre, com uma abordagem técnica dos termos relacionados a uma bacia hidrográfica. Nem pelo fim (foz), nem pelo começo (nascente); simplesmente iniciamos por um ponto aleatório.

Dezembro 2021 – Maria Alvim Soares e o córrego invisibilizado. Este local é emblemático e mostra o distanciamento do humano em relação ao meio. Dali para o Alvinópolis II e depois o brejo aterrado ao lado do ponto de captação de água no SAAE Imperial. Por fim, um bate papo com o Tom e o Luizão. Os dois, moradores das barrancas do Onofre, mas cada um tendo uma percepção das águas de modo muito distinto.

Janeiro 2022 – Pesqueiro, corredeiras do Pomba, igreja Água Espraiada, planície alveolar e por fim, a recepção de Iete no sítio Araçá Azul, com um delicioso cuscuz nordestino acompanhado de um café de coador indescritível. Um ambiente de muita energia com Oxum fazendo “chuá” com águas do Onofre. Acolhedor.

Fevereiro 2022 – Pousada Canto das Águas. Afonso, espirituoso, recebe-nos numa beirada de tarde de uma sexta. Josi, esposa de Daniel, relata uma leve fragrância no ar, enquanto caminhamos pela estrada que leva até a casa. As beiradas da noite começam a se mostrar. Por debaixo de nossos pés, numa das salas da pousada, as águas do Onofre escoando por entre as rochas ecoando vozes ancestrais. Certamente os espíritos da floresta.

Março 2022 – Junta-se ao grupo Tércio e Josi. Igreja Brotas, ponto final da romaria das Brotas. No passado, uma grande seca assolou a região Atibaiana (assim dizem) e a localidade na qual hoje há a Igreja das Brotas era o único ponto com água. Dali retomamos o Onofre. Mergulhamos pelas ruas do Bairro Imperial/Cerejeiras. As águas de um dos afluentes do Onofre encoberta pelo asfalto. Só nos damos conta de que há rio por debaixo das ruas e casas, quando acessamos uma localidade pouco acima do Terminal Urbano de Ônibus Intramunicipal. Pouco abaixo deste terminal, o rio que nos oferece água, recebe em troca esgoto.

No alvinópolis 2 no Ato pela Terra

Abril 2022 – Ato pela Terra. Sítio Araçá Azul. Ato à Pachamama. Enquanto estávamos aquilombados numa área semelhante a uma pequena arena, Kitembo se fez forte ao soprar o vento e nos lembrar do tempo, mas não o tempo do relógio. Um tempo que se encontra perdido em nossos crespos.

Maio 2022 – Agora sim. Fomos ao local no qual tudo começa: a nascente do Onofre. É uma outra Atibaia. Ao grupo, juntou-se Neia (acima) para esta travessia. Após muito andar, finalizamos no sítio da Lika, conhecida de longa data de Josué e Daniel.

Junho 2022 – Por fim, o fim. A foz no rio Atibaia. Ali ao lado da Estação Atibaia. Quem nos acompanhou muito gentilmente foi Cristiano. Moço humano que transbordou humanidade e que muitas histórias nos contou de seu tempo de ainda menino.

Julho 2022 – Uma parada para os olhares sobre aquilo que passou e sobre o que está por vir. Um bate papo na casa da Neia, com café, bolo de fubá com goiabada (e erva-doce). Prosa boa entre gente humana com humanidade.

Percepções e afetividades

Não é importante entender. Importante é ser parte. É sentir-se meio ambiente.

Sem pretensão, sem planejar qual seria nosso roteiro, de modo “leve” e dinâmico como as águas do Onofre, deixamo-nos ser conduzidos por algo que transcende o concreto. A química entre nós, caminhantes, possibilitou-nos frequência (uma vez ao mês), consistência (duração de cada travessia e conteúdo) e fluidez (leveza e prazer) de uma forma natural e intuitiva. Além disso, laços, recordações, resgates vieram à tona com as conversas ao longo das travessias.

A certo ponto ocorreu o transbordar, o derramar, o não caber em si, consequência das postagens nas mídias digitais daquilo que vínhamos encontrando ao longo das travessias. Outros caminhantes noutras travessias surgem.

O Embasamento das percepções e afetividades

A questão das percepções e afetividades são ímpares. Nem sempre concordamos. Em relação ao nosso realismo, resgatamos o olhar de Sidarta Ribeiro em “Sonho Manifesto”: como ser otimista diante do processo apocalíptico em andamento. Para embasar os argumentos/apontamentos sustentamo-nos nas falas de Davi Kopenawa e Ailton Krenak, os quais são enfáticos ao dizerem: menos gerenciar, mais cuidar.

Ailton Krenak e Davi Yanomami. Imagem: ISA

Krenak lembra-nos que para a Terra não somos especiais, mas somente mais uma espécie que a habita e com ou sem nós, a Terra continuará sua trajetória. Não somos especiais. Enquanto nos acharmos gerentes da Terra, seguiremos por um caminho irreversível.

Kopenawa, com a queda do céu, explica-nos o sufocamento indicando que a sexta extinção em massa (antropocênica) já se encontra em andamento.

Diante de tamanho ruído e aspereza, distanciamo-nos da sintonia da Terra. Perdemos nossa essência. Por fim, Leonardo Boff e um tal Francisco, o Papa, alertam-nos de que não há um planeta B.  

Por mais que megalomaníacos, humanos sem humanidade como Elon Musk, vendam Marte como o planeta B, a Terra é nossa casa comum. Não só nossa, mas de várias outras espécies. Argumentos que inerentemente estavam em nós, mas o expressar em palavras dependeu desse suporte. A realidade que se abre diante de nossos olhos, um tanto perturbadoras e encantadora.

As percepções

Esperávamos encontrar um rio noutro estado, no entanto o vimos pior. Em vários trechos, como um animal pesteado.

Considerando que o canal principal apresenta 23km de extensão, temos três blocos:

  1. da foz até o Posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF): o único afluente existente na margem direita (MD) neste trecho é o Ribeirão dos Porcos. Os demais, ou secaram ou encontram-se invisibilizados como o córrego que se encontra por debaixo da Avenida Maria Alvim Soares;
  2. da PRF até ponto no qual o Onofre recebe afluente que vem da Estrada Vicinal José Cintra próximo ao Big do Portão: neste trecho, todo e qualquer afluente da margem esquerda (ME) encontra-se seco ou invisibilizado, a exemplo do afluente que passa próximo ao ARPA, no Portão;
  3. do Big Portão até a nascente: tanto da margem esquerda (ME) como da margem direita (MD), os afluentes encontram-se presentes, mas com forte interferência antrópica.

Prenúncio de futuras tragédias com duas forças: inundações (baixo curso) e escorregamentos. A Petropolização (termo adotado por nós*) ou Francorrocheirização (*idem) que vem se dando ao longo da Estrada do Clube da Montanha, aumentando o potencial dos movimentos gravitacionais de massa (MGM).

O tempo de permanência da água na bacia está abreviado. Não está ocorrendo o “plantar água”, termo emprestado da professora Irene Tavares da Universidade Federal de Viçosa (UFV). As travessias, ao todo sete, ocorreram em três estações sazonais:

  1. primavera: travessias de novembro e dezembro;
  2. verão: travessias de janeiro a março;
  3. outono: travessias de abril a junho.

Em nenhuma das travessias nos deparamos com chuva. Não houve, em março: “…são as águas de março encerrando o verão; é promessa de vida…”.

A relação rico e pobre. Aqui, um apontamento trazido pela Tatá, esposa do Josué, que em particular, eu (Kleber) muito me conflitou; foi provocante, instigante. Levou-me a chegar em casa e ficar a dialogar comigo sobre o dito. Foi ótimo o apontamento, pois possibilitou-nos observar em nós, caminhantes, nossa percepção diante da dualidade rico e pobre.

Aqui damos fala aos geógrafos e professores Aziz Nacib Ab’Saber e José Bueno Conti, os quais diziam que o rico come pelo alto enquanto o pobre pela base ou nas bordas, ao se referirem a Serra da Cantareira. Estamos vendo isso no bairro do Portão.

Na região mais “preservada” da bacia do Onofre, em nossa simples percepção, o rico se apossando daquilo que é público. Apossando-se de um bem essencial à vida: a água. Diante da beleza cênica do local, caímos no vislumbre e perdemos a criticidade.

E aqui resgato Riobaldo que diz não haver o ser diabo, em algum canto. Há, sim, Homem humano no qual, em seus “crespos”, vige o diabo. E assim (não se sinta incomodado com essa pontuação) nossas percepções foram cooptadas pelo “diabo” que nos habita, escondido em nossos “crespos”.

Ao final, alguns fatos. A tendência é o Onofre desaparecer, tornar-se intermitente, aos poucos. Um mero canal para despejo de esgoto e eventual água de chuva. O SAAE já, nas entrelinhas, diz isso.

Com a interligação do sistema e conclusão do reservatório no SAAE central, toda a cidade será abastecida por um único rio: o Atibaia. O Onofre será do entroncamento da estrada do Clube da Montanha com a estrada da Água Espraiada até a nascente.

Área propensa a condomínios de elevadíssimo padrão, em campos de altitude, o que levará a mudanças no padrão de ocupação do Bairro do Portão.

E aí. O que fazer?

Continuar a travessia mostrando e trazendo aquilo que nossos sentidos captam.

Diante do apocalipse podemos sentar e esperar o fim ou continuarmos a mobilização.

Essa mobilização poderá, talvez, possibilitar a manutenção de um “lar” menos áspero, menos rugoso. Poderá trazer para o humano a humanidade. Fazê-lo preenchido e não oco.

Não se trata de meio ambiente. Trata-se de nós. Não se trata de gerenciar, mas sim cuidar.

Como externalizam alguns povos na África Ocidental, SANKOFA, que significa “não ser errado voltar para trás e buscar o que deixamos lá no passado (se wo were fi na wosan kofa a yenki), temos que fazer esse movimento dentro de nós.

E isso foi o que fizemos ao longo dessas travessias e conversas ao longo do Onofre.

Para finalizar, trazendo o que diz Eliane Brum em seu “Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo, se passarmos por ele, o banzeiro, chegaremos à terceira margem (João Guimarães Rosa) que com maestria José Miguel Wisnik nos ajuda descortinar. Passando o banzeiro, na terceira margem, òkòtó. Resta-nos perguntar, cada um consigo, o quanto estamos dispostos a sair do banzeiro. Percebermos que não somos a única espécie que tem inteligência. Somente parece que somos, pois estamos habituados a ver por um único ângulo.

Adendo

E aqui, algo muito particular de mim, Kleber.

Enquanto preparava este artigo, minha sogra (com 93 anos de sabedoria) acompanha a missa das 18:00. Missa transmitida do Pai Eterno, Trindade/GO. Padre Marco Aurélio, o padrão como diz ela, fazendo a homília e por vezes traz a mensagem de que temos de ter humanidade em nós.

Frisa que não podemos nos tornar vazios, caídos. Temos que ser seres humanos preenchidos de humanidade. A Terra está aí. Tudo está dando respostas a nós, humanos. Resta-nos perguntar-nos.

Ubuntu…