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O Natal de Raimunda

Juliana Gobbe

Ao dobrar mais uma esquina com os olhos grudados na carga de papelão, ali, tão frágil, prestes a cair, Raimunda num lance de segundos, rememorava sua infância. O pai, um homem zangado, pela fome, pela seca e pela barriga grande de seus 8 filhos, era mais um número trágico nas frias estatísticas onde o povo nordestino sempre morre num curto ciclo de vida, ou melhor, de sobrevivência. Apesar da zanga, “Seu Pitico”, como era conhecido nas redondezas de Garanhuns, mantinha ares de esperança em relação a Deus, a um governo decente que olhasse para a pobreza e, também tinha na sua companheira: Dona Graça, algum ânimo para plantar, mesmo sabendo da colheita incerta.

Naquele ano o Brasil ia mal, os milicos com seus coturnos, pisaram sem piedade nos sonhos de muita gente. Seu Pitico ouvia no rádio as notícias daquele país em que vivia, mas não sabia ao certo sobre sua imensidão.

Diante das vicissitudes apresentadas pelos dias difíceis no sertão, decidiu enfiar nas trouxas, não só as poucas roupas, mas também as esperanças. Partiu com a família para São Paulo. Ia a pé, no pau de arara, através dos caminhos agrestes como aquela alma cansada.

Ao chegar na Metrópole, todo tipo de desilusão, gente estranha, olhares desconfiados, ar fétido saindo pelas grandes “chaminés” das fábricas.

Com a ajuda de uma ala decente do cristianismo, conseguiu um emprego como porteiro do velho e tenebroso edifício Joelma. Seu Pitico e a imensa família, moravam mal, comiam pouco e assim foram desbravando seus dias.

Os 8 filhos foram crescendo e se misturando ao caos e indiferença da grande cidade.

A bela Raimunda, logo percebeu que seu futuro era incerto, trabalhou em casas de família, lavou louças em restaurantes, vendeu doces na rua; comeu o pão que o capitalismo amassou. Teve vários homens e com eles sentiu raiva e prazeres fugidios, mas só quando encontrou Luzia, na mesma levada que ela, descobriu o amor.

Os anos passaram e Raimunda morava nos guetos, seu sustento, se é que o podemos chamar assim, vinha do papelão que recolhia nas ruas.

No dia 24 de dezembro de 2016, a jovem escritora caminhava pela praça da Sé, de repente seu olhar cruzou com o dela e a chama da cumplicidade se fez. Sentaram juntas e dividiram suas histórias, também repartiram alguns sonhos na véspera de um natal qualquer e o desejo de ter um motivo pra ser feliz.

Eu que também douro as palavras, procurei hoje, nas entranhas do meu coração, um assunto para escrever, encontrei Raimunda e, com ela tantas outras com seus sonhos estraçalhados pelas tacanhas intempéries do mundo. E, finalizando esta crônica, eu queria mesmo é que eu não a tivesse escrito, também queria que as Raimundas não mais precisassem catar a vida nos lixos, assim eu pretendia um outro amanhecer para a humanidade que ao perder a existência todos os dias, nos ensina muito sobre o viver.

Juliana Gobbe é Doutora em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Autora de Óculos de Marfim e À esquerda do Império (2017). Coordena o blogue “Tecendo em Reverso” e os coletivos Abraço Cultural e Kalúnia.