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Taça de vinho

Marcelino Lima*

O corpo da taça, de vidro espesso, fica levemente bordô, da cor do meu vinho preferido, bebida que só agora que estou adentrando nos 60 aprendi a apreciar e, hoje, tomo religiosamente, antes dos meus 30 minutos de leitura quando vou para a cama. Nunca fora chegado a álcool. Uma das razões para não molhar a goela sistematicamente é ter muito medo de ficar bêbado e de perder o controle da situação (sabe aquela história de não ser mais o dono dele? Pois é!), fora a ressaca, moral, inclusive, e o papelão que a embriaguez pode causar.

E ademais não estou assumindo ou incentivando um vício, mas apenas revelando uma licença consciente que concedi ao prazer pessoal; curto meu semi-sec assim como a uma boa moda de viola, assinar um haicai ou sentir um dos meus gatos amassando pãozinho no meu peito, por exemplo; são momentos de relaxar e entrar em comunhão com a metafísica, de acariciar a alma e a cuca. Sem contar que ando convencido de que está mais do que na hora de assumir e de fazer o que gosto, até para que a espiritualidade, dimensão que mais atrofíamos durante a curta existência, ponha suas manguinhas de fora, invoque e liberte o orixá que há em mim e me faça experimentar a vida por outro prisma! Axé!

Talvez seja a fase de descobrir e vivenciar as dores e as delícias de ser o que sou. Tenho uma linda e ótima companheira, uma casa no mato cheia de livros e de discos, um punhado de amigos e, apesar da conta corrente quase a zero e nem um Prêmio Esso na carreira, além do time do coração que anda dando sustos e tomando sarabacos direto do arquirrival, eis me aqui! Ainda não consigo viver sem minha venlafaxina, mas sinto que a metanoia veio para ficar e no que depender exclusivamente de moa salve a adolescência da alma: se é daqui logo menos ao pó, quero que velhice me encontre trabalhando e costurando meus bordados com as linhas mais firmes e coloridas disponíveis.

Sonho em escrever O Alfaiate, que seria meu livro, mas para tanto me faltam as tais balas na agulha que o Padura ganhou umas dez vezes na fila antes de fugir do céu quando Deus estava a dormir. Mas tudo bem, vamos a um passo de cada vez, deslizar nas nuvens sem medo e soltar a carcaça na correnteza: a maturidade veio sorrateira como a Joquinha quando invade meu cobertor e se aninha onde o calor é mais intenso, apressá-la, enxotá-la ou tolhê-la para quê? O vento sabe como tirar a melhor música do sino de bambu, mesmo quando parece que está quieto. A morte que me alcance quando achar que já pode me tolerar e me leve não como um fardo, mas como aquele que olhou para a própria e levantou a saia da alienação.

Olhos e ouvidos,
tudo em mim atento:
espero o relâmpago.

#haibun

Marcelino Lima é jornalista profissional formado pela PUC-SP e editor do blog Barulho d’Água Música, dedicado à produção independente. Divulga gratuita e exclusivamente músicas de artistas populares, de viola, de raiz, folclóricas e regional com trabalhos pouco conhecidos ou já consolidados e de qualidade que poderiam ter maior destaque na mídia comercial.