Sobre o disco Rabiola, de Osni Ribeiro e Arnaldo Silva
…) Você pode me dizer agora, pra não existir aurora
Mas encaro você de espora, se disser pra não existir viola (…)
Caipira absoluto, Rodrigo Zanc, faixa 5 do álbum Pendenga (2006)
Marcelino Lima
Discuto com quem quiser e dou uma boiada para brigar com quem tiver a moral e a ousadia de afirmar que moda de viola não é coisa boa; não interessa se é de Deus, quando tocada nas louvações e nas folias, por exemplo, ou se é instrumento mais afeito ao Pé Redondo que, em troca da alma de alguns mais incautos (ou astutos), ensina as manhas de como pontear e enfeitiçar plateias e salões, incendiando as cordas caipiras nos pagodes ou cateretês, entre outros ritmos que nos tiram da inércia. Cá comigo, tanto faz! Afinal, quem tem o dom, seja ele imanente ou derivado do pacto que quebrou dedos no talho de uma nogueira numa encruzilhada ou no insuspeito buraco da parede da capela na roça, se levar a coisa a sério, independentemente do Senhor a que serve, costuma tocá-las com graça, leveza, maestria, virtuosismo, devoção, atrevimento, meio que transportado, em suspenso, orgulhoso, conectado ao sagrado (ainda que pelo avesso), em poesiamento seja qual for o mote para tira-lá do repouso, afiná-la e declarar: está aberta a cantoria! Em solo para o canto ou reivindicada no modo puramente instrumental, viola, instrumento de origem árabe se aprendi bem as lições transmitidas pelo mestre Ivan Vilela, abrasileirada depois de trazida de além-mar pelos portugueses, acende saudades, desperta paixões, cutuca e fecha feridas, clareia a mente ou a zoneia, não deixa ninguém incólume. Rir ou chorar são apenas dois dos efeitos colaterais que entre danos ou catarses vai do arrepio da pele, puro e simples, à lagrima, às interjeições que revelam espanto…
Acabo de ouvir pela terceira vez de uma tacada só Rabiola, disco récem lançado de Osni Ribeiro em parceria com Arnaldo Silva. Osni conheci em 1996, em Paranavaí (PR), em rodas de viola na calçada do hotel em que estávamos hospedados ou no quintal da casa do Serginho Torrente; participamos, em modalidades diferentes, do Festival de Música e Poesia (Femup) naquele ano. A memória já me falha, mas acho que o Arnaldo também estava na turma. Por um tempo, perdemos o contato, mas eis que a estrada nos “reaproximou” e solidificou aquela amizade por conta do meu ofício de blogueiro, eles lá, em Botucatu, eu aqui, em São Roque; quase nunca a gente se esbarra em algum concerto, vida bandida na qual a correria impera, mas a admiração mútua não esmorece. Ribeiro e Silva, nome de dupla caipira, seguiram para nossa sorte fazendo o que mais sabem e gostam, tocam o fino no álbum que já está nas plataformas digitais — hoje, gostemos ou não, o principal suporte e a vitrina mais atraente para lançamentos e audições.
Valho-me do adjetivo até certo ponto reducionista “fino” porque não encontro palavras para classificar o Rabiola e o imediato sovacão que as 11 faixas abriram em meu peito, o jato salgado que me banhou o rosto especialmente ao ouvir as duas que encerram o projeto (Pagode da China e Porto da Ribeira), passando pelo clássico Tristezas do Jeca, do seu Angelino, ensaiada em outras leituras como milonga; a sonoridade reinante no entorno da Serra de Maracaju (entre a região de fronteira que aproxima os campos do Cerrado e o Pantanal Matogrossense); ou na Serra da Borborema, onde reina o sertão agreste, ao estilo de Heraldo do Monte. Ou, ainda, na cadência de Cartola, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, pretos dos morros carioca, a cor da alma brasileira. E também passeando e nos levando para um rolê nos vagões do Villa-Lobos, a bordo da Suíte dos Trens.
Arrebentando de coceira nos dedos, parei no ato o que estava fazendo, fumei até o talo três paierinhos para escrever sobre este arrebatamento e dar meu testemunho, com a Benê atrás do monitor do note também apresada; Andreia veio me perguntar porque eu chorava e eu apenas fiz um muxoxo, pois: ah, meu pai, ah, minha mãe, não é que eu me encontrei de novo aos pés da cama deles, em uma longínqua alvorada incipiente, calorosa e luminosa, ouvindo Zé Béttio no radinho de pilha? Foi ali que tudo começou, gente…
Nestes quase 30 anos em que convivo mais com o Osni Ribeiro, ainda que seja muito mais daquele modo remoto do que presencial destes tempos tecnólogicos que nos aproxima sem nos por ao alcance do abraço e dos afetos não-cibernéticos, nunca soube quem é o Maestro que o forjou — mas de novo, pouco importa este mero detalhe. Aliás, ele é violeiro capaz até de ensinar aos Dois, seja pela sensibilidade, seja pela ousadia de quem faz simplesmente o simples: tocar como quem reza, como quem celebra, como quem agradece, como quem sonha, como quem vislumbra, como quem transcende, como quem prescuta, como quem narra, como quem faz Ambos suspirar. Eu diria, por fim, que só pode ser coisa de quem é um louco do bando; os bons entendedores entenderão, mas seja como for: se for do Osni Ribeiro, me chama que eu vou.
Agora me deem licença, preciso de mais um cigarro, de um novo lenço: vou rebobinar a fita! E se eu fosse você correria para uma plataforma para também dar linha nesta pipa até batizar a lata!
Marcelino Lima é jornalista profissional formado pela PUC-SP e editor do blog Barulho d’Água Música, dedicado à produção independente. Divulga gratuita e exclusivamente músicas de artistas populares, de viola, de raiz, folclóricas e regional com trabalhos pouco conhecidos ou já consolidados e de qualidade que poderiam ter maior destaque na mídia comercial.