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Cornimboque

Não demos conta do quanto tínhamos nos enfurnado até acharmos que estaríamos perdidos, embora todas as indicações informadas que haveria pelo caminho, contando mata-burros e incluindo a derradeira habitação, conferissem. As placas, lamentavelmente, haviam caído com o tempo ou foram vandalizadas, gps, esquece. Então decidimos rodar pelo menos mais cinco quilômetros e, caso não encontrássemos a entrada, meia volta! Mas foi percorrer menos da metade deste trecho e já começamos a ouvir o murmúrio da água caindo sobre pedras; havia chovido bem na véspera e, satisfeitos, sorrimos felizes: ia dar bom e nem reparamos na carcaça que, embora não cheirasse mal, atraia uma chusma de urubus.

Tiramos as roupas, mergulhamos, fizemos amor sobre tapetes de folhas, ceiamos frutas que o lugar oferecia; no ar a mistura dos perfumes do mato e do chá. Pouco tempo depois, uns barulhos, parecia de bicho grande, pisadas pesadas quebrando gravetos, esturros. Nos entreolhamos, mais surpresos do que assustados: afinal, o pessoal que vive por estas bandas enfeita, ou melhor, gosta de exagerar nos causos, botar cagaço nos de fora. Onça não poderia ser, como um felino de porte iria rondar naquele cornimboque do Judas? Demos de ombros, mergulhamos de novo até a hora de deitar o cabelo, no morrer do sol, pois melhor baixar ainda com alguma réstia na vila. Tramelei a porteira, voltei ao meu lugar no carro, ela, ao volante, com cara de quem se lambuzou no dodileite. Não deu cem metros, brecada seca, quase minha fuça no para-brisa: a pintada saia do mato, parou, nos deu uma encarada daquelas, bufou, mostrou as presas, se foi. Seguindo-a, três pitocos…


Casinha amarela –
Depois, até a cachoeira,
Não mora ninguém…


Seria mau agouro?
Do que resta do boi morto,
Os chifres intactos…


#haibun

Foto e arte: Marcelino Lima, dezembro 2023, Roça do Ribeirão (Guidoval, Zona da Mata/MG)

Marcelino Lima é jornalista profissional formado pela PUC-SP e editor do blog Barulho d’Água Música, dedicado à produção independente. Divulga gratuita e exclusivamente músicas de artistas populares, de viola, de raiz, folclóricas e regional com trabalhos pouco conhecidos ou já consolidados e de qualidade que poderiam ter maior destaque na mídia comercial.