BlogsExclusivas

Caminhando contra o vento

Marcelino Lima

Os ponteiros rumam para a posição 23 horas e, para variar, o ônibus está atrasado. É o último da linha que passará pelo bairro onde moro e começo a ficar irritado, pois, além da aflição, da fome (estou sempre com) e da canseira, a temperatura despenca gradativamente, obrigando-me a me apertar contra os próprios braços, posto que o agasalho já mais não dá conta de reter o calor e me manter aquecido. Eu já saíra de casa pela manhã sabendo das condições atmosféricas na hora do retorno e, principalmente por esta razão, decidi não ir de bicicleta para os meus compromissos em busca do pão nosso de cada dia. Há, ainda, o discreto peso da mochila na qual carrego os apetrechos que uso nos trampos e uma ou outra besteirinha que comprei de uma lista que ela me enviou e se fizeram necessárias no cafofo. Lembrar-me dela à minha espera, e talvez já ansiosa pela demora em regressar, pensando bobeiras e temerosa, cai como a gota d’água: resolvo botar os pés na estrada. Ao longo do caminho, com certeza, em determinado momento, o busão passará por mim, e eu poderei embarcar. Mas resolvo encarar a distância, pouco mais que 7 quilômetros, por um atalho que me obrigará a atravessar trechos escarpados e um curral abandonado, contornar um lago e subir morros, mal iluminados pela luz embaciada que indica por onde avançar.

E lá vou eu caminhando a desafiar o senhor Éolo, agora com um lenço a tentar tapar as narinas que ensaiam congelar a cada nova lufada; ainda assim dá para sentir o aroma gelado que exala dos eucaliptos e provoca nos canais nasais aquela sensação de quem acaba de colocar uma bala de halls extraforte na língua que se amortece. A mão direita, sem luva como a esquerda, apalpa dentro do bolso do casaco a binga e meu palheiro. Pode ser que o rebojo não me facilite acender o cigarro, ademais terei de tirar a bandana que trouxe de São Tomé das Letras e que cobre meus lábios, entretanto uns tragos caem bem. Busco no celular a trilha com músicas do Cacaso, porém, entendo: é melhor estar atento aos sons que me cercam e acompanham para evitar as surpresas do acaso. É então que ouço cachorros das propriedades próximas latirem, em coro, uns mais perto, outros mais além. Auscultaram quem vem lá e logo cruzará defronte as porteiras que guardam; alertas, já avisam um ao outro. Ou talvez o barulho do motor do único veículo que poderia estar trafegando por aquelas bandas naquele exato instante. Ensaio correr para chegar antes ao ponto por onde ele passará, contudo desisto. Envio a mensagem que estou a caminho, beijo minha guia de Oxalá e aperto o passo…

Vento que assovia–
Procuro achar meu caminho
No rastro do luar.

O latir de cães ao longe
Ecoa na noite fria.

#haibun

Marcelino Lima é jornalista profissional formado pela PUC-SP e editor do blog Barulho d’Água Música, dedicado à produção independente. Divulga gratuita e exclusivamente músicas de artistas populares, de viola, de raiz, folclóricas e regional com trabalhos pouco conhecidos ou já consolidados e de qualidade que poderiam ter maior destaque na mídia comercial. A imagem é da Isadora Almeida (IA).