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“Quando eu canto” – Sobre as águas da voz

Juliana Gobbe

A cultura popular brasileira é recanto de paisagens diversas. Aqui e acolá, desnudam-se vozes, gestos e olhares que ainda insistem em vislumbrar as profundezas de um país embriagado pelos ecos de uma jovem história que se entrelaça a outros cantos.

Não por acaso, particularmente na história da música, que aqui, ouso chamar de nossa, há um caminho percorrido por homens, desde instrumentistas até cantores.

Ao observamos a caminhada de artistas mulheres, deparamo-nos com Chiquinha Gonzaga que alçou fama por seu merecido talento, não antes de passar por momentos de rejeição e chacota por parte da sociedade de sua época.

Assim foi com tantas outras, que precisaram da presença e do apoio paterno no começo de suas carreiras, como a jovem Elis Regina no Rio de Janeiro da década de 60 do século passado.

As circunstâncias nunca favoreceram as jovens cantoras em início de carreira, até mesmo o repertório cantado por mulheres da era do rádio no Brasil é marcado pela docilidade e passividade das mulheres perante os homens. Do outro lado, a culpabilização da mulher pelo amor não correspondido ou pelo término do relacionamento. Um olhar atento para as letras e logo se constata o papel da figura feminina cantado em versos aos quatro ventos. Dentro deste contexto histórico desafiador, surgiram e ainda surgem vozes transformadoras.

Por entres as frechas das imensas janelas das cidades, observamos as águas que escorrem de vozes especiais: Eis Isadora Títto.

Conheci Isadora há muitos anos e sempre fui admiradora de seu trabalho. Há nela uma cultura imensa, o que facilita demais a vida de uma artista. Nem só de repertório musical, vivem as cantoras, é preciso mais e Isadora sempre soube disso, tanto no canto como na atuação.

No último sábado ela comemorou 25 anos de carreira com o show: “Quando eu canto” no Casarão Júlia Ferraz em Atibaia. O local histórico fez parte também de sua trajetória como artista e apoiadora inconteste das causas e lutas pelo patrimônio.

Durante mais de uma hora ela nos deu de presente as águas de sua voz. Com sua “sina de cirandeira” compromissada com as mudanças da sociedade e com o rompimento das ideias puídas. Assim foi com Comportamento Geral de Gonzaguinha e Baioque de Chico Buarque. Numa interpretação em movimento de águas de maré alta, ela deu seu recado para nossas inércias e desconversas em torno da importância de viver. Aqui eu chamo a atenção para o comprometimento da nossa cantora em prol da coletividade, seus caminhos em nada colidem com o individualismo dos sucessos de massa.

Durante o seu show, muitas artistas da canção também foram homenageadas, como Alzira Espindola, Joyce Moreno e Simone Guimarães. Importante ressaltar o trabalho das águas formadoras, pois são elas que dão o tom das novas águas.

Em encontro com a inspiração do céu, vem Cantiga pra Lua de sua própria autoria, uma poesia de caminhos e olhares em direção aos movimentos das nossas horas cotidianas.

À Isadora Títto nossas flores e desejo de que as águas da sua voz estejam sempre em ebulição para a alegria de quem possa conhecê-las.

Juliana Gobbe é Doutora em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Autora de Óculos de Marfim e À esquerda do Império (2017). Coordena o blogue “Tecendo em Reverso”, os coletivos Abraço Cultural e Kalúnia e participa do Coletivo André Carneiro.