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O meio ambiente precisa ser gerenciado?

Estima-se que aproximadamente 3 bilhões de animais foram mortos ou perderam seus habitat durante o Black Summer. Fonte: ABC news – James Carmody

Pamella Grangeiro Barros de Freitas

Escrevo de um lugar chamado Meanjin (língua Yuggera), mas que hoje é conhecido como Brisbane, uma cidade do estado de Queensland, Austrália. Eu reconheço os guardiões tradicionais dessa terra, os povos Yuggera e Turrbal. Presto meu respeito a eles, à sua cultura, e às gerações passadas, presentes e futuras.
Desde pequena sempre tive muito interesse pelo meio ambiente, mas que na minha concepção na época, se limitava às plantas e aos animais.

Essa paixão sempre me fazia refletir sobre o porquê os animais eram tratados como seres inferiores, cujo único propósito de vida era servir aos seres humanos (especialmente animais de consumo). Com o passar do tempo, fui compreendendo que o meio ambiente não se limitava àquela minha concepção e, na verdade, englobava uma série de dinâmicas e interações que envolviam inclusive os seres humanos. Interações responsáveis por permitir a vida na Terra.

Ao longo dos anos de graduação aprendi, sob uma lógica capitalista, sobre desenvolvimento sustentável e gerenciamento dos recursos naturais. Eu estava fascinada em adquirir tanto conhecimento sobre os processos naturais que resultam em um planeta tão diverso, mas algo para mim não fazia sentindo. Mais uma vez, eu não conseguia entender porque o meio ambiente (dessa vez em um conceito mais amplo, englobando também água, solo, ar e tudo mais que existe) eram tratados apenas como fontes de bens e serviços para a humanidade, e cujo valor era sempre atrelado ao benefício que podíamos extrair deles.

Gerenciar significa administrar algo, logo, gerenciamento dos recursos naturais pode ser entendido como a administração destes recursos. Já o Desenvolvimento Sustentável, de uma maneira geral, é definido como um desenvolvimento (econômico) que não esgote os recursos naturais. Note que ambos os termos nos remete a ideia de uma superioridade humana sobre a natureza.

Indígenas australianos são a civilização mais antiga do planeta de acordo com estudos de DNA. Fonte: The Guardian – Matt Turner/Getty Images

Uma ideia Eurocêntrica de que o homem é um ser separado do meio natural, que ele está no topo controlando os recursos naturais para o desenvolvimento econômico de sua sociedade. Seguindo essa lógica, vamos poluindo a água, o solo, o ar, levando animais a extinção, e destruindo nossa própria espécie em nome de um progresso. Progresso guiado por uma perigosa suposição de que existe um movimento quase que obrigatório que se direciona de maneira linear partindo de um meio ambiente em seu estado natural para um ambiente mais desenvolvido e civilizado, um ambiente que precisa ser domesticado pelo homem.

Assim como o Brasil, a Austrália também foi invadida por colonizadores europeus, que durante o processo de colonização dizimaram os povos originários, e os sobreviventes foram forçados a se adaptarem à cultura do invasor. No entanto, as populações aborígines australianas resistem, e por isso, estou tendo o privilégio de aprender com essas populações que nós humanos não estamos acima do meio ambiente, ou paralelo a ele, fazemos parte dele, estamos conectados.

Para os povos indígenas, tudo no meio ambiente se relaciona de maneira recíproca. Sendo assim, para eles, o termo gerenciamento ambiental não faz sentido. Ora, se o homem é parte inseparável dos ecossistemas e suas dinâmicas naturais, numa relação em que não existe propriedade e proprietário, então não há espaço ou necessidade para a existência de gerentes. O termo adotado pelos povos indígenas é cuidado. Eles cuidam do meio ambiente ao invés de gerenciá-lo.

O termo Caring as Country (Cuidando como País), nos dá a dimensão desse cuidado. País, na concepção dos povos aborígenes, abrange tudo o que existe, coisas tangíveis e não-tangíveis. Notem que a preposição usada no termo é como, pois os povos indígenas cuidam da Terra e em retorno a Terra cuida deles em um relacionamento recíproco e sagrado que se quebrado resulta em danos para todos.

Obviamente, os povos aborígenes, ao contrário do que é assumido pela cultura colonizadora, possuem maneiras bem sofisticadas de se relacionarem com o meio ambiente de modo a extrair dele o necessário para sua sobrevivência.

Um belo exemplo é o uso do fogo no cuidado (ou gerenciamento, caso o leitor queira fazer uma analogia ao conceito ocidental) do solo. A queimada cultural, como é chamada no conhecimento nativo, é empregada para melhorar a oxigenação e a fertilidade do solo, para a supressão de plantas invasoras, no auxílio na caça de cangurus e lagartos e para o controle de grandes queimadas indesejáveis, como as queimadas que ocorreram em diversas partes do país em 2019/2020 conhecidas como Black Summer (Verão Negro). A queimada cultural ou queimada fria (cool burning), é praticada com respeito e cuidado.

Segundo a Watarrka Foundation, a queimada é praticada como pequenas chamas que são acesas para limpar a vegetação rasteira. Nesse processo o material que serviria como combustível para grandes queimadas no verão são consumidos antes, diminuindo assim os riscos de incêndios de grandes proporções. Além disso, essa atividade cria habitat para uma diversidade de animais.

O valor que o meio ambiente tem para os povos indígenas está na conexão profunda que eles têm com os ecossistemas. Para eles, os ecossistemas e tudo que existe são importantes apenas porque são, porque existem, independentemente de sua utilidade para os seres humanos. Cabe a nós, pessoas não indígenas, reavaliar o significado de progresso e a necessidade de tanto progresso. Cabe a nós aprendermos com os povos originários o que é realmente importante para nossa existência antes que seja tarde demais.
Pamella Grangeiro Barros de Freitas é engenheira ambiental.