A justiça fora da lei
Sérgio Vieira
Uma pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP) publicada em 2017 revelou que 74% dos autos de prisão em flagrante no Brasil aconteceram sem a palavra de testemunhas que não os policiais envolvidos. Já a pesquisa “Tráfico e sentenças judiciais – uma análise das justificativas na aplicação de Lei de Drogas no Rio de Janeiro (2018) apontou que, em 53,79% das condenações por tráfico de drogas no estado, a palavra dos policiais foi a única prova usada pelo juiz para fundamentar sua decisão. E em 71,14% eles foram as únicas testemunhas dos processos. Estas informações fazem parte do Relatório de Junho de 2021 do próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) “O Sistema Prisional Brasileiro fora da Constituição”.
Ou seja, para que você seja preso no Brasil, basta que um policial, promotor ou juiz cruze o seu caminho e duvide da sua idoneidade diante de um determinado fato. Foi o que aconteceu com a gari Maria Luzia Cavalcante, funcionária da Companhia de Urbanização de Goiânia. Em um processo cheio de inconsistências, ela foi acusada de coparticipação no assassinato do ex-namorado, Divino Gomes dos Santos.
Maria Luzia foi presa temporariamente no dia 20 de julho, mas no dia 18 de agosto de 2022, ela teve a prisão convertida em preventiva pelo Juiz Eduardo Pio Mascarenhas da Silva da 1º Vara Criminal do Tribunal de Justiça de Goiás. Para o advogado Uziel Matias Barbosa, que acompanha o caso, a prisão de Maria Luzia aconteceu de forma equivocada e reflete mais um dos erros da justiça.
Ele entrou com um pedido de Habeas Corpus alegando que Maria Luzia foi presa após decorrido o prazo de 24 horas de audiência de custódia. Além disso, Maria Luzia possui residência e empregos fixos, o que não justifica uma prisão temporária.
No pedido de Habeas Corpus (HC), o advogado alega a “ausência de fundamentação idônea da decisão que decretou a prisão preventiva”. De fato, no processo contra Maria Luzia a única “prova” contra ela é o depoimento do assassino do seu ex-namorado. O HC foi negado pela justiça. Logo após a prisão temporária de Maria Luzia, familiares, amigos e colegas de trabalho uniram-se na esperança de encontrar apoio para que a justiça reconsidere o caso.
Maria Luzia possui três filhos. Um deles, Gabriel Nayan de Bastos Rangel, é portador de necessidades especiais. Ele é criado pela mãe e requer cuidados e acompanhamento direto. Mesmo este detalhe não foi o suficiente para sensibilizar a justiça goiana para que Maria Luzia responda o processo em liberdade. A Rede Goiana de Mulheres Negras tem se manifestado nas redes sociais pela liberdade de Luzia.
O relatório da CNJ citado, revela outros casos onde pessoas inocentes foram presas injustamente e passaram longos dias de angústia em presídios. E, caso você tenha um mínimo de conhecimento sobre o sistema prisional brasileiro e a justiça, já deve saber muito bem qual é o perfil de pessoas que mais sofrem com estes erros em processos criminais.
Em junho de 2020, a ONG Innocence Project Brasil publicou o Relatório “Prova de Reconhecimento e Erro Judiciário”, com o objetivo principal de fornecer subsídios para a reformulação do entendimento de nossos tribunais a respeito do reconhecimento de suspeitos.
O relatório já foi citado em mais de 300 casos no Superior Tribunal de Justiça. Em 70% dos casos, a Corte usou o relatório para libertar ou absolver condenados que foram reconhecidos de forma errada por testemunhas. A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça passou a usar o relatório da ONG para fixar paradigmas essenciais e evitar a condenação de inocentes.
Enquanto você lê este texto, Maria Luzia está numa cela da Casa de Prisão Provisória (CPP) de Goiás. É bem provável que você não a conheça e talvez não se solidarize com o caso. Porém, é fato que a Justiça Brasileira precisa rever a forma como atua e prende pessoas para evitar que inocentes parem na cadeia.