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“Descompassado” atravessa trajetória de voos e revoadas do Pé de Pássaro

Renato Torres

“Já é canção?” – a peculiar (hoje histórica) pergunta feita por mim para Isadora Títto em 2012, quando ainda nos conhecíamos apenas pelas redes sociais, uma década depois me revela camadas delicadas: a imanência musical que sempre suspeitei existir nas palavras, ali se insinuava como um convite intuitivo a um projeto que nem eu nem minha parceira poderíamos supor sua envergadura. E, claro, precisava ser uma canção de amor a canção primeira, miticamente engendrada na espuma do mar, na água, de onde toda vida e toda imaginação humana brotaram, e continuam a brotar.

Ao entrever nos versos de Isadora uma tessitura rítmica, o ijexá se presentificou de imediato, e não à toa: tanto eu quanto Isadora – descobriríamos depois – temos a presença de Oxum em nossas cabeças, o orixá feminino, energia ligada à água doce (dos rios-mares amazônicos), que é honrado por este ritmo nigeriano. O sal do mar de Yemanjá presente na letra da canção propõe o equilíbrio da dualidade que viria a reger o Pé de Pássaro: feminino/masculino, serra/planície, norte/sudeste, fogo/terra, etc.

“Descompassado” atravessou toda a trajetória de voos e revoadas do Pé de Pássaro, sendo cantada desde nossa primeira apresentação no Festival de Inverno de Atibaia, em julho de 2013, até chegar ao registrofonográfico lançado em single, e que compõe o álbum comemorativo de 10 anos do duo, “Sabiazeiro”, a ser lançado ainda em novembro de 2022. Ainda em meados de 2015, quando prospectávamos a gravação de um possível álbum (que só se realizou em 2017, o EP Voar a Pé), já havia a anotação de que o arranjo deveria ter o som de uma flauta: o sopro de vento que representa hoje nossos voos e revoadas, ou seja, nossas peregrinações pelos palcos de diversas cidades, onde nos apresentamos/voamos diante da plateia, e com ela. E faz todo sentido – sem o vento, não se pode ter ondas no mar…

Pé de Pássaro em apresentação no Solar do Casarão Julia Ferraz, em setembro de 2017. Imagens: Osni Dias

Realizamos a gravação definitiva só agora em 2022, e pra isso chamamos velhos companheiros de jornada, que já nos acompanharam em voos em Belém: Maurício Panzera, no baixo, e João Paulo Pires – Percuteria, na percussão. O sonho de ventanias marinhas foi realizado pela magia sonora da flautista marajoara Sonyra Bandeira, que trouxe a pureza de seu som burilado por anos de estudos profundos deste instrumento, e sua entrega apaixonada ao arranjo, e seus desenhos melódicos cheios de encantamento, mistério e beleza.

Como uma canção de amor, naturalmente “Descompassado” carrega os eus líricos que, então, viviam a paixão desenhada entre dunas e ondas, mas Isadora incluiu uma personagem especial (e real, ainda que pareça saído de um conto fantástico de Gabriel Garcia Márquez): Zé Peixe, mergulhador encantado da cidade sergipana de Aracaju, que com sua fantástica capacidade de guardar sopros dentro de si, mergulhava guiando os navios nas encostas pra que não encalhassem nos bancos de areia. O amor, afinal, é como o mar: precisa ter fôlego de sobra para se saber o largo de suas profundezas, e aprender a se guiar em suas correntezas. Quisera ser como Zé Peixe.

Ouça aqui: https://link.quae.com.br/PeDePassaro_Descompassado

Renato Torres é produtor musical – Guamundo Home Studio