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Cabedal (ou outra forma de chamar um cão, sem dono e escaldado)

Marcelino Lima

Se gato escaldado tem medo de água fria, cachorro que já levou uma par de bicas no lombo e mordidas em arranca-rabos sabe a hora certa de atravessar a pista, não engasga com osso, não corre atrás de automóveis, não mais se atormenta com rojões, distingue bem um tiro de um trovão e não vira qualquer lata: “bolinha o caraí, aqui o sistema é bruto!”. Bichanos têm as manhas de deslizarem pelos telhados? Cão velho conhece maneiras de dar zigues, desvios, atalhos, becos e vielas, entra e vaza, fleumático, de qualquer buraco ou pico — é a sentinela das bocas. Querido como “parça” pelos malacos, bêbados, zorós e boêmios, mostra os dentes que ainda restam na boca pra “alemão” que tira a favela; acha o adjetivo “pet” um escárnio digno de um ataque às canelas de quem assim fala, coisa de poodle de madames solitárias e sonsas. E rosna quando o chamam de totó: as pulgas respeitam seu sangue (bom) de mano e apenas dormem em seu ralo pelame, axé!

Esta linhagem de perros gosta de mostrar a visão, mas nunca late como se fosse o dono da verdade. Troca ideias e vira e mexe papos retos com a galera da turma do Manda Chuva; tanto os mais jovens, quanto os ainda filhotes, respeitosamente, inclinam-se à presença do “tio” que tratam por “Cabedal”; entre estes, muitos considera membros de sua prole de incontáveis filhos, netos, bisnetos, trinetos — afinal, não há cadela com a qual ainda não tenha virado a madrugada em gafieiras, andanças, bebedeiras e libertinagens. Ora está aqui, ora perambula por lá, mas tem o hábito de voltar ao seu lugar cativo na mesma praça onde dorme (com um olho aberto, outro no peixe!) sob o mesmo banco e no mesmo jardim; ali sempre acolhe, libera para quem pede espaço ou um canto para cair, pois, como ele, vacilou na vida ou vadia por apego à liberdade. Até mesmo os ratos podem colar, são bem-vindos, mas as tigelas dele são sagradas: ninguém ousa nelas tocar ou as roubam, mais por reverência do que por temor.

Seu território, enfim, pode ser o mundo inteiro, qualquer pedaço de terra ou de asfalto onde bata sol e se possa ficar de papo pro ar vendo brilharem estrelas e a lua. Com o satélite, por sinal, há os que alimentam — como alguns gatos também o fazem — um estranho e platônico caso de amor e desandem a uivar sempre que a musa fica redonda no céu…

Imagem gerada por inteligência artificial pelo autor.

Marcelino Lima é jornalista profissional formado pela PUC-SP e editor do blog Barulho d’Água Música, dedicado à produção independente. Divulga gratuita e exclusivamente músicas de artistas populares, de viola, de raiz, folclóricas e regional com trabalhos pouco conhecidos ou já consolidados e de qualidade que poderiam ter maior destaque na mídia comercial.